Década de 70 no Brasil: os ecos da contracultura e do movimento hippie chacoalhavam o império de repressões da inútil ditadura militar. Estávamos com um pouco mais de uma década de vida e, embora não entendêssemos profundamente o que acontecia, sentíamos a tensão e o medo em nossos pais, irmãos, professores e amigos mais velhos.
Não eram anos só de explosões culturais positivas – como o irreverente Ney Matogrosso negando qualquer formalismo nos palcos ou a mutante Rita Lee desafiando a caretice geral da época – tendo os Beatles e os Rolling Stones entre escândalos e rock ‘n roll planeta afora. Eram tempos de desaparecimentos de amigos e conhecidos e do exílio de muitos ídolos.
Fora o extremo conservadorismo que impedia toda tentativa de respeito ao diferente, proteção aos direitos humanos e de evolução como um todo. Nós, crianças, tínhamos de cantar hinos alienantes na entrada da escola e nos conformar com programações por demais previsíveis na TV. Contudo, havia uma alternativa de fuga contra todas as ameaças que tornavam a atmosfera pesada até em uma cidade pequena e distante como Muqui, ao sul do Espírito Santo.
E essa bênção era o trem que chegava à estação eventualmente, deslizando pelos trilhos da cidade e trazendo a bordo uma emoção locomotiva: o cinema! Os vagões de passageiros traziam, adicionalmente, os rolos dos filmes que iriam estampar a telona da única sala de projeção local: o Cine São Jorge! As esperadas sessões eram nossa mais segura opção para escapar dos tensos anos de chumbo. Na verdade, o escurinho do cinema era uma forma de nos reconectarmos com a boa emoção e o sonho.
Caminho inevitável para o encantamento e a magia: tudo o que o regime militar massacrava com sua estupidez e sua forma medíocre de ser. Obviamente não havia rede social eletrônica para denúncias; canais streaming como diversão e tampouco TVs por assinatura que nos permitissem variar o foco de generais assassinos para algo que nos gerasse boas perspectivas de futuro. E o pouco de canais com real entretenimento que sobrava estava sob os grilhões da censura e seus broxantes filtros!
Dessa forma, mais que nos descortinar um portal mágico para a fantasia e a inspiração em geral, o cinema era uma forma de nos reconectar a nós mesmos em tempos muito sombrios – reafirmando os ideais da arte de despertar em todo sólido a nobre intenção de voar. Assim como revestir a inevitável certeza da nossa finitude com a sensação de eternidade própria do cinema.
Quer melhor exemplo de sustentabilidade do que ter a sétima arte como antídoto à brutalidade e combustível da sensibilidade, da poesia e do propósito de estar vivo? Mergulhar na genialidade dos cineastas era como atravessar um mundo de muitas sombras em direção à reconfortante e alentadora claridade. A propósito, luz, câmera… e reconexão!